INVESTIGAÇÃO DE UM ACIDENTE DE TRABALHO USANDO FERRAMENTAS DE MELHORIA CONTÍNUA. Um caso real numa operação de logística

15 abril 2019
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Author :   César Petrónio Augusto
Augusto, C. P. (2019). Investigação de um acidente de trabalho usando ferramentas de melhoria contínua. Um caso real numa operação de logística. Revista Segurança Comportamental, 12, 17-21. GA, Lda. Lisboa. Portugal César P. Augusto | Engenheiro mecânico. Diretor de Operações/Produção, Manutenção, HST e Excelência Operacional, em empresas multinacionais dos setores Químico, Alimentar, Farmacêutico e da Embalagem. | cesar.p.augusto@gmail.com

Conhecer de forma aprofundada o acidente ou o problema, estimular o seu debate, utilizando ferramentas de melhoria contínua, resulta na identificação de causas raiz e na aposta certeira das ações de prevenção. Ter uma visão Lean sobre o problema, conduz à melhoria, promove a diminuição de desperdício, mais produtividade e entrega de mais valor para o cliente interno e externo. Segurança, melhoria contínua e logística, são aqui explanadas com um caso real de investigação de um acidente de trabalho ocorrido numa área de operações de logística.

 

A OCORRÊNCIA
Recebi um telefonema a pedir rapidamente a minha presença no armazém, sem que me dissessem a razão para tanta urgência. Quando lá cheguei, uma colaboradora encontrava-se deitada no chão, assistida por dois ou três colegas, com uma fratura exposta no pé direito, enquanto aguardavam a chegada do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Tinha sido vítima de atropelamento por um empilhador, conduzido por um colega da sua própria equipa. Dei por mim a segurar muito devagar no pé estropiado de Natália, numa tentativa de lhe tentar reduzir a dor, dar algum conforto e prestar os primeiros socorros. A ferida aberta, a fratura exposta, o sapato de proteção desfeito, que não conseguira cumprir a sua função, não evitando o esmagamento e corte lateral do pé, debaixo do trajeto imparável de uma das rodas do empilhador…
Após uma primeira assistência pelos socorristas da empresa, Natália foi assistida pelo INEM e encaminhada para o Hospital, tendo ficado vários meses acamada, necessitando de algumas intervenções cirúrgicas e plásticas para a reconstituição do pé e um longo período de recuperação com fisioterapia, até poder voltar a andar e a desempenhar novamente as suas funções (também ela era condutora de empilhador). Acabando por nunca ter conseguido recuperar totalmente a mobilidade do seu pé direito.
Segurança, melhoria contínua e logística, como três áreas tão importantes se podem ajudar, ilustrado com um caso real de uma investigação de um acidente de trabalho ocorrido numa área de operações de logística.

"Um peão que caminhava no local errado (...). Um condutor a realizar uma manobra de marcha atrás sem que tivesse visto o peão (...). Erro humano, comportamentos inseguros, fator humano(…)"

O DESPERTAR
Desempenhava na altura as funções de responsável de segurança dessa empresa e, apesar da formação teórico-prática em primeiros socorros e alguma prática em simulacros e situações reais de emergência, nada nos consegue preparar para este tipo de embates da vida. Enquanto segurava o pé da minha colega acidentada e aguardávamos a chegada da equipa do INEM, pensei que apesar de todo o esforço que tínhamos feito até então na área da segurança, algo teria ainda de mudar para que qualquer um de nós não voltasse a estar numa situação idêntica a esta. Este evento funcionou como o despertar para a necessidade da aplicação de outro tipo de ferramentas e metodologias, que aplicadas à investigação de acidentes, nos pudessem fazer descobrir causas mais profundas e assim procurar outras medidas mais eficazes.
Ambos os intervenientes no acidente, Natália e Casimiro, eram colegas e condutores de empilhador, que se encontravam dentro do armazém. Natália circulava como peão, num corredor exclusivo para circulação de empilhadores e Casimiro retirava uma palete, no final de uma máquina envolvedora, fazendo uma manobra em marcha atrás, quando atropelou Natália. Nesse trajeto a roda traseira do empilhador passou por cima do pé direito de Natália, comprimindo-o, rasgando-o, partindo-o e atirando-a para o chão.

PRIMEIRAS INFORMAÇÕES RECOLHIDAS
Da pré-investigação do acidente, iniciada quase de imediato após o término das operações de socorro, resultaram as seguintes primeiras conclusões:
Precisamente para tentar evitar acidentes deste tipo, a empresa já tinha restringido o acesso de peões aos armazéns, locais onde circulavam vários empilhadores e onde só podiam entrar pessoal devidamente autorizado e usando colete refletor, para aumentar a sua visibilidade.
Ambos os trabalhadores eram condutores de empilhador devidamente encartados, com vários anos de experiência em funções e perfeitamente rotinados nos equipamentos que conduziam e no espaço onde operavam. Ambos com várias formações recebidas em temas generalistas de segurança, bem como na temática específica da condução de empilhadores.
No momento do acidente, ambos os colaboradores respeitavam o procedimento da empresa para o uso de colete refletor.
O empilhador foi testado e evidenciava ter todas as suas funcionalidades operacionais, das quais se destacavam os testes feitos aos faróis, travões, “pirilampo”, buzina, espelhos retrovisores e indicador sonoro de marcha atrás.
A empresa tinha implementado um programa de “Regras de Ouro” para a segurança, dando especial ênfase aos temas que, no seu entender em termos probabilísticos, permitiriam evitar acidentes mais graves, entre as quais se encontrava a regra “Ver e ser visto”, que alertava para a importância de, enquanto peões, todos os colaboradores da empresa verem e garantirem que eram vistos, antes de atravessarem um corredor de circulação de empilhadores.
Com base neste conjunto de primeiras informações recolhidas, continuámos a estruturar o que viria ser a investigação de acidente, ainda com muitas emoções à flor da pele e sentindo o quão difícil é fazer a investigação de um acidente quando conhecemos os intervenientes do mesmo, quando são pessoas de quem gostamos, colegas com quem estamos habitualmente, com quem bebemos diariamente o café…
Um peão que caminhava no local errado, na altura errada e que não se fez ver.
Um condutor de empilhador a realizar uma manobra de marcha atrás sem que tivesse visto o peão que atropelou de forma brutal.
Erro humano, comportamentos inseguros, fator humano…
E a investigação poderia ter ficado por aqui e cada um dos envolvidos no socorro ao acidente, teria lamentado o sucedido e regressado aos habituais e inúmeros outros afazeres profissionais que nos preenchem os dias, encerrando assim o dossier.
A gravidade dos acontecimentos e a perceção generalizada que por muito pouco, este mesmo acidente se poderia ter facilmente transformado num atropelamento fatal, não nos deixou fechar assim o dossier, deixando bem claro a importância da realização de uma investigação e análises mais profundas.

"Foram realizadas entrevistas personalizadas e em grupo aos intervenientes, chefias e colegas. Realizadas várias reconstituições do acidente no local, realizados desenhos e diagramas de spaghetti, que permitiram a reconstituição da sequência de passos e trajetórias dos dois intervenientes."

RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS COM FERRAMENTAS DE MELHORIA CONTÍNUA
Dizia Einstein: “se me dessem uma hora para resolver um problema, passaria 50 minutos a caracterizá-lo o mais detalhadamente possível e somente os últimos 10 minutos a resolvê-lo”. Com este princípio em mente, foi decidido continuar a recolher o máximo de informações possível e optámos pela utilização de ferramentas de resolução de problemas de melhoria contínua/Lean.
Foram realizadas entrevistas personalizadas e em grupo aos intervenientes, chefias e colegas. Realizadas várias reconstituições do acidente no local, realizados desenhos e diagramas de spaghetti, que permitiram a reconstituição da sequência de passos e trajetórias dos dois intervenientes.
Como na maioria das investigações que envolvem duas partes, também neste evento surgiram versões opostas e contraditórias, com Natália a alegar excesso de velocidade e negligência de Casimiro e Casimiro alegando que Natália surgiu muito rapidamente no campo de ação do seu empilhador, num “ângulo morto” e sem “ver nem ser vista”.
O que leva um peão a circular num corredor de circulação de empilhadores sem garantir que é visto e sem questionar que o trajeto é seguro? Porque sempre fez assim? Porque não tinha a perceção de que este trajeto era inseguro?
E o que leva um condutor de empilhador a fazer uma manobra de marcha atrás sem ter a certeza de que não há algo na sua trajetória? Porque não conseguiu parar a tempo? Circularia muito depressa?
A tentação era de saltar de imediato para uma análise de 5 Porquês, mas, para obter uma caracterização mais detalhada do problema, foi primeiro usada a ferramenta 5W1H, permitindo dissecar mais detalhadamente os what, where, when, who, which and how da ocorrência.
Esta foi então complementada com o diagrama de Ishikawa, onde, para além das famílias de causas Men, Machine, Material and Method, foi aplicada a nova versão alargada que inclui também as famílias de causas Management e Environment.
E então, já com uma ideia bem mais concreta do contexto e de algumas eventuais causas, finalizou-se a análise com a ferramenta dos 5 Porquês, que mostrou “dois ramos” principais de causas: as do condutor Casimiro e as de Natália o peão.
Estas análises mais completas e formais, permitiram relembrar que Casimiro, no espaço de um ano, para além deste, já tinha estado envolvido noutros dois incidentes, que só tinham tido consequências materiais, mas que evidenciavam a hipótese de excesso de velocidade sem que tal tivesse sido provado. Também na análise 5 Porquês, se levou em consideração as hipóteses de excesso de velocidade ou eventual desleixo do condutor que poderia ter acelerado demasiado no arranque e/ou nem ter olhado para trás, durante a manobra de marcha atrás. Embora fossem hipóteses colocadas e investigadas não foram possíveis de validar nem de eliminar, dada a ausência de testemunhas e de imagens do ocorrido, pelo que este ramo da investigação não levou a conclusões factuais.
O “ramo de causas” da acidentada, permitiu chegar a conclusões mais interessantes. Natália circulava a pé nesse local para aceder a uma impressora, para recolher uma etiqueta que iria colar na “sua” palete que estava a passar dentro de uma máquina envolvedora. Máquina envolvedora essa de onde Casimiro saia em marcha-atrás com a “sua” palete. Então o método de trabalho instituído durante anos, de uma forma informal, implicava que o condutor de empilhador se deslocasse a pé, ao final da máquina envolvedora, para imprimir e colar a etiqueta na “sua” palete, enquanto na mesma área podem coexistir outros empilhadores, transportando as “suas” paletes.
Sim, Natália tinha de ir buscar a etiqueta para identificar a palete, após o final da operação de envolvimento com filme plástico na máquina envolvedora, mas não tinha de caminhar pelo percurso escolhido: o do corredor de empilhadores. Tinha um corredor pedonal disponível, mas onde gastaria mais tempo na deslocação.
Sim, a etiqueta tem de ser colada na palete, para identificação da mesma, mas pode ser colocada de forma automática, através da instalação de uma impressora com aplicação automática de etiqueta na palete, que desta forma já não obrigue à deslocação do colaborador, como peão, para fazer essa aplicação manual.
Sim, esta mesma aplicação de etiqueta tem de ser feita após envolvimento com filme plástico, na saída da envolvedora, mas pode ser aplicada do lado oposto da envolvedora, onde aí sim, já existe um corredor pedonal e onde não é possível a circulação de empilhador, bastando para isso movimentar a impressora, para o lado oposto da envolvedora.
Sim, as causas deste acidente são humanas, mas só as causas primárias e superficiais. Um peão que se encontra num local onde não pode circular e um condutor de empilhador que numa manobra de marcha atrás não vê a colega e a atropela. Utilizando ferramentas de análise de problemas de melhoria contínua, e uma análise mais fria e distanciada da realidade emocional do acidente, permitiu observar a floresta toda e não só a árvore.

"A tentação era de saltar de imediato para uma análise de 5 Porquês, mas, para obter uma caracterização mais detalhada do problema, foi primeiro usada a ferramenta 5W1H, permitindo dissecar mais detalhadamente os what, where, when, who, which and how da ocorrência. Esta foi então complementada com o diagrama de Ishikawa, onde, para além das famílias de causas Men, Machine, Material and Method, foi aplicada a nova versão alargada que inclui também as famílias de causas Management e Environment."

PACOTE INTEGRADO DE AÇÕES
Para evitar e recorrência deste acidente foi implementado um pacote integrado de ações, que pretendeu abraçar as dimensões de causas técnicas, humanas e de gestão, como forma de evitar acidentes deste tipo no futuro.
Das quais se destacam a montagem, em toda a frota de empilhadores, de faróis “anti-atropelamento” que na altura eram novidade e que permitem, com um foco de luz visível no pavimento, anunciar, à distância, a presença do empilhador em movimento em locais onde ainda não é possível ver o empilhador em marcha.
Embora o armazém fosse uma zona com pouco espaço disponível, devido à grande acumulação de paletes, foram criados novos corredores pedonais.
Foi realizada a comunicação do acidente e das suas conclusões, em todas as reuniões semanais com as equipas da empresa. Atualização das análises de risco e das formações de segurança, com as conclusões deste acidente. O reforço das Regras de Ouro da Segurança, que já acautelavam a hipótese de eventuais atropelamentos de peões por empilhadores.
E a alteração da localização da impressora, para que, nesta mesma tarefa, se tornasse impossível o cruzamento entre peões e empilhadores.

"Com o objetivo combinado de melhorar segurança e produtividade, começou assim uma análise mais profunda de questionar layouts, mudar localização de equipamentos, alterar procedimentos e de eliminar tarefas não produtivas e que também pudessem comprometer a segurança. (...) À luz do Lean, um problema é também uma oportunidade de melhoria, pelo que estes não devem ser ignorados, mas sim prontamente encarados, reunindo todas as informações por mais irrelevantes que possam parecer na fase de recolha, analisando-as detalhadamente na procura dessas causas raízes, quase nunca evidentes (...)

MELHORAR SEGURANÇA E PRODUTIVIDADE
Para além das causas técnicas e das humanas/comportamentais, que são sempre as mais fáceis de apontar, este tipo de ferramentas permitiu questionar também as causas dos acidentes que têm origem na gestão/organização do trabalho, começando a questionar se não haverá maneiras diferentes de fazer o mesmo trabalho e que simultaneamente garantam a segurança, reduzam desperdício e acrescentem valor ao cliente, interno e externo.
Com o objetivo combinado de melhorar segurança e produtividade, começou assim uma análise mais profunda de questionar layouts, mudar localização de equipamentos, alterar procedimentos e de eliminar tarefas não produtivas e que também pudessem comprometer a segurança. Como uma tarefa realizada várias vezes por hora, a de ir a uma impressora buscar uma etiqueta e aplica-la numa palete, numa área com uma grande circulação de empilhadores. Tarefa rotineira que tinha, até então, passado despercebida nas análises de risco e na perceção de riscos de segurança de toda a equipa.
Fico muito grato pela atitude de melhoria contínua da empresa, que perante tal acidente não se contentou com as causas imediatas e apostou na equipa de investigação, para que se conseguisse determinar com maior profundidade as causas raízes do acidente. Apesar de podermos ter todas as ferramentas e as melhores boas práticas, é no alinhamento e na abertura da gestão de topo que começa o sucesso na aplicação de tais ferramentas.
Problemas e acidentes existirão sempre. À luz do Lean, um problema é também uma oportunidade de melhoria, pelo que estes não devem ser ignorados, mas sim prontamente encarados, reunindo todas as informações por mais irrelevantes que possam parecer na fase de recolha, analisando-as detalhadamente na procura dessas causas raízes, quase nunca evidentes, mas que, quando resolvidas contribuem com uma maior probabilidade, para evitar a recorrência do fenómeno.

Nota: Os nomes utilizados, neste caso real, são fictícios.

 

Segurança Comportamental

A revista Segurança Comportamental é uma revista técnico-científica, com carácter independente, sendo a única revista em Portugal especializada em comportamentos de segurança.

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