Começo por referir que os acidentes de trabalho representam de forma muito clara a desumanização do trabalho contemporâneo. Um dos fatores passível de contribuir para o aumento do número de acidentes é a enorme diferença existente entre trabalho prescrito e trabalho real (Areosa, 2014a). O trabalho prescrito é a forma como o empregador idealiza a realização do trabalho (tempos de trabalho e de tarefas, regras, normas, EPI’s disponíveis, tipo de máquinas utilizadas, etc.). É importante referir que nem sempre os trabalhadores cumprem na íntegra o modelo que foi desenhado pelo empregador. Isto não significa que os motivos para estes “desvios” sejam exclusivamente imputáveis à vontade, autonomia ou liberdade de decisão dos próprios trabalhadores; pelo contrário, a forma como está planeada a execução do trabalho pode estar subjugada por múltiplas questões organizacionais (impossibilidade técnica, avaria de máquinas ou equipamentos, pressão para aumentar a produção, etc.).
O trabalho real pode ser entendido como a forma como as tarefas são efetivamente realizadas pelos trabalhadores. Segundo Rasmussen (1997) a análise do trabalho real vem muitas vezes demonstrar uma variedade de situações vividas pelos trabalhadores que não estão previstas nas normas e regras de segurança das empresas. É preciso acrescentar o trabalho vivo dentro das organizações, o qual é imprescindível para o seu bom funcionamento, mas, por vezes, este mesmo trabalho vivo pode estar na génese de alguns acidentes. Porém, Amalberti (2016) defende que nem todos os desvios ao trabalho prescrito são necessariamente negativos, esta ideia está a considerar de modo muito consistente alguns dos conhecimentos sobre a nossa forma de pensar quando estamos a trabalhar. No decorrer das suas atividades laborais alguns trabalhadores preferem efetuar “desvios” ao trabalho prescrito, quando sabem antecipadamente que esses “erros” não se traduzem em cenários ou consequências perigosas para a organização (ou para si próprios), do que ter de cumpri-lo à risca e ter basear o seu funcionamento cognitivo em regras que tornam o trabalho mais lento, desgastante, fastidioso e que envolve recursos fatigantes. Aceitar determinados desvios considerados inconsequentes pode revelar-se uma gestão mais económica do ponto de vista cognitivo (Amalberti, 1996). É indispensável integrar um melhor conhecimento sobre os fatores humanos na sua relação com o trabalho.
"Os acidentes de trabalho representam de forma muito clara a desumanização
do trabalho contemporâneo. Um dos fatores passível de contribuir para o aumento do número de acidentes é a enorme diferença existente entre trabalho prescrito e trabalho real (Areosa, 2014a)."
Poderemos nós, alguma vez, eliminar todos os acidentes? Não, não podemos! Afinal, o mundo é um local repleto de incertezas, contingências, indeterminações, ameaças e por aí adiante. Os acidentes sempre fizeram e sempre farão parte dos eventos ocorridos em sociedade, e isto pode explicar, em parte, o porquê de eles poderem ser considerados como um problema social grave (Areosa, 2012a; 2012b). É verdade que os acidentes podem ocorrer em todos os lugares (escolas, casa, locais de trabalho, estradas, etc.), em diversas circunstâncias e derivar de múltiplas causas. Esta fatalidade social à qual todos nós estamos sujeitos depende dos riscos e dos perigos que corremos ao longo das nossas vidas (sabendo que eles são entidades ubíquas no mundo real). Isto significa que os perigos e riscos são uma espécie de antecâmara para a ocorrência de sinistros ocupacionais (Areosa, 2009). Por outras palavras, os acidentes só acontecem porque existem perigos e riscos a montante (os quais são muitas vezes ampliados por diversos mecanismos decorrentes do capitalismo). Os acidentes são eventos que ocorrem de forma repentina, mas às suas causas podem estar associados, simultaneamente, fatores sincrónicos e diacrónicos (Areosa & Dwyer, 2010). Em sentido etimológico, o termo acidente significa um qualquer evento não planeado, fortuito, imprevisto e/ou fruto do acaso. Pode também significar algo nefasto, maléfico e aleatório que provoca danos ou prejuízos. Tal como foi referido acima, ao contrário daquilo que seria desejável, podemos “profetizar” a existência de uma impossibilidade empírica para controlar e antever todas as situações passíveis de causar acidentes (os riscos, quer sejam os conhecidos, quer sejam os desconhecidos não nos permitem atingir essa meta). Na realidade, os riscos que estão na base dos acidentes e das doenças relacionadas com o trabalho são, de certo modo, omnipresentes (Areosa, 2010; 2011).
Na verdade, os acidentes de trabalho são um problema social grave a nível global, podendo até ser entendido como uma questão de saúde pública (tal como as doenças profissionais). Além das evidentes consequências para os trabalhadores sinistrados, ainda existem diversos problemas familiares (pelo menos nas situações mais graves), bem como implicações para o funcionamento interno das organizações e do próprio país onde eles ocorrem. Todavia, os acidentes são fenómenos complexos, multifacetados e com implicações muito diversificadas. Alguns setores de atividade e algumas empresas são, de facto, autenticas “fábricas de riscos” não controlados, cujas consequências são bem conhecidas (Bhopal, Piper Alpha, Chernobyl, Fukushima, etc.). Mesmo nos casos em que os acidentes “apenas” envolvem um único trabalhador, podemos estar perante situações graves, nomeadamente amputações ou outras disfunções permanentes, cujo caso extremo passa pela morte do sinistrado. Ironicamente podemos afirmar que trabalhar nestes locais acaba por ser uma atividade altamente arriscada e perigosa, onde os trabalhadores parecem estar a jogar a uma espécie de “roleta russa”! É com esta realidade que alguns trabalhadores têm de conviver no seu quotidiano. Tudo isto acaba por ser ampliado devido ao facto de vivermos no apogeu do capitalismo desorganizado, onde se verificou-se uma forte tendência para a intensificação do trabalho (Dal Rosso, 2008).
"Ao contrário daquilo que seria desejável, podemos “profetizar” a existência de uma impossibilidade empírica para controlar e antever todas as situações passíveis de causar acidentes (os riscos, quer sejam os conhecidos, quer sejam os desconhecidos não nos permitem atingir essa meta). Na realidade, os riscos que estão na base dos acidentes e das doenças relacionadas com o trabalho são, de certo modo, omnipresentes (Areosa, 2010; 2011)."
Mas afinal por que é que o capitalismo pode ser determinante para o aumento dos acidentes e de alguns tipos específicos de doenças? A principal razão para isso (embora longe de ser a única) é porque dentro desta teia de interesses somos “obrigados” a trabalhar mais e em condições que poderiam ser bem melhores (caso não houvesse a incessante procura do lucro e a respetiva concentração de capital, o que acaba por inviabilizar a melhoria das condições de trabalho); mas as empresas insistem em não reduzir o tempo de trabalho, nem melhorar as condições laborais porque os recursos produzidos pelo trabalho são canalizados para pequenos grupos poderosos. Neste contexto, continua a fazer sentido falar na exploração do homem pelo homem (tal como Marx já tinha preconizado). Todavia, é precisamente esta exploração que acaba por estar a montante da ocorrência de tantos acidentes (quer sejam acidentes “maiores” ou industriais, quer sejam acidentes “menores” ou de trabalho), bem como em alguns tipos de doenças associadas à elevada sobrecarga de trabalho (Areosa, 2014a).
Os acidentes de trabalho decorrem, habitualmente, da articulação e interação de múltiplos fatores (perigos e riscos), incluindo a forma como os trabalhadores percecionam os seus riscos ocupacionais (Areosa, 2012c; 2014b). Apesar dos acidentes serem regra geral multicausais, é quase sempre possível identificar uma causa “principal” (por norma esta causa está relativamente próxima do momento do acidente), ou seja, é o evento que permitiu “gatilhar” ou despoletar a ocorrência do acidente. Porém, esta análise superficial da alegada causa principal (reitero, normalmente mais próxima do momento do acidente) tende a não considerar outros fatores igualmente importantes que permitiram construir as circunstâncias do acidente. Aqui podem interagir, entre outros, fatores técnicos, tecnológicos, organizacionais, económicos, sociais e individuais, embora as análises de acidentes raramente considerem a articulação e interação conjunta destes diversos fatores. Mas eles influenciam-se continuamente entre si. Regra geral, não são consideradas as raízes das causas, nem os diversos fatores que possibilitaram gerar o alinhamento simultâneo ou sequencial de condições que permitiram chegar até ao acidente. Em resumo, tendem a ser ignoradas ou esquecidas o conjunto de todas as circunstâncias que contribuíram para que aquele evento final (acidente) pudesse ter ocorrido. Este facto leva Hollnagel (2004) a afirmar que deveríamos procurar não somente as causas dos acidentes, dado que em determinadas situações faz mais sentido procurar explicações (e não as causas), pois os acidentes são heterodeterminados.
Referências Bibliográficas:
AMALBERTI, René (1996), La conduite des systèmes à risques. Paris: Presses Universitaires de France.
AMALBERTI, René (2016), Gestão da Segurança: Teorias e práticas sobre as decisões e soluções de compromisso necessárias. Presidente Prudente-SP: Gráfica CS – Eireli – EPP.
AREOSA, João (2009), “Do risco ao acidente: que possibilidades para a prevenção?”, Revista Angolana de Sociologia, 4, pp. 39-65.
AREOSA, João; DWYER, Tom (2010), “Acidentes de trabalho: uma abordagem sociológica”, Configurações, 7, pp. 107-128.
AREOSA, João (2010), “O risco nas ciências sociais: uma visão crítica ao paradigma dominante”, Revista Angolana de Sociologia, 5/6, pp. 11-33.
AREOSA, João (2011), “Riscos ocupacionais da Imagiologia: estudo de caso num hospital português”, Tempo Social, 23 (2), pp. 297-318.
AREOSA, João (2012a), O lado obscuro dos acidentes de trabalho: um estudo de caso no setor ferroviário. Famalicão: Editora Húmus.
AREOSA, João (2012b), “O contributo das ciências sociais para a análise de acidentes maiores: dois modelos em confronto”, Análise Social, 204, pp. 558-584.
AREOSA, João (2012c), “As perceções de riscos dos trabalhadores: qual a sua importância para a prevenção de acidentes de trabalho?”, in Hernâni Veloso Neto, João Areosa e Pedro Arezes (Eds.), Impacto social dos acidentes de trabalho. Vila do Conde: Civeri Publishing, pp. 65-97.
AREOSA, João (2014a), “Os efeitos do trabalho na saúde mental: Uma análise a partir da psicodinâmica do trabalho”, in Hernâni Veloso Neto, João Areosa e Pedro Arezes (Eds.), Riscos psicossociais no trabalho. Vila do Conde: Civeri Publishing, pp. 49-72.
AREOSA, João (2014b), “As perceções de riscos laborais no sector ferroviário”, Sociologia, Problemas e Práticas, 75, pp. 83-107.
DAL ROSSO, Sadi (2008), Mais trabalho: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo.
HOLLNAGEL, Erik (2004), Barriers and accident prevention. Hampshire: Ashgate.
RASMUSSEN, Jens (1997), “Risk management in a dynamic society: A modeling problem”, Safety Science, 27, pp. 183-213.