Numa perspetiva histórica, Christophe Dejours destaca que a clínica do trabalho e a psicopatologia do trabalho, as quais surgiram em meados do século passado, dedicaram-se, exclusivamente, aos efeitos negativos do trabalho.
Entretanto, durante a década de 1980, chegaram novos contributos para esta discussão, oriundos de outras abordagens disciplinares, nomeadamente a ergonomia, a psicologia, a sociologia, a psicanálise, a medicina ou a antropologia (isto só para citar algumas delas).
Na década seguinte emerge então uma nova disciplina, designada por psicodinâmica do trabalho, onde é ampliado o debate sobre os efeitos do trabalho na saúde mental. Dentro desta renovada conceção, o trabalho deixou de ser apenas observado a partir dos seus fatores negativos, passando também a considerar os aspetos positivos que nos pode proporcionar.
Esta dualidade não é exatamente nova, tendo em conta que já desde Karl Marx sabíamos que o trabalho nos podia oferecer o “melhor” e o “pior” para a nossa existência.
Contudo, aquilo que parece constituir-se como algo realmente novo nesta abordagem é a descoberta da extraordinária influência que o trabalho pode ter sobre a saúde mental, destapando o véu sobre uma dualidade até então obscura, ou seja, concebe o trabalho como uma ação benéfica ou, pelo contrário, como algo bastante prejudicial.
Este é um dos aspetos inovadores que a psicodinâmica do trabalho nos tem vindo a transmitir, a partir de um manancial de conhecimentos, simultaneamente, teóricos e empíricos.
Voltamos a sublinhar que existem sobreposições temáticas entre a psicopatologia do trabalho e a psicodinâmica do trabalho. Enquanto a primeira estava maioritariamente centrada nas doenças mentais provocadas pelo trabalho, a segunda foi além disso e tentou compreender como é que os trabalhadores lidavam com o sofrimento provocado pela violência imposta pela organização do trabalho e, particularmente, quais as estratégias que utilizavam para se proteger/defender desse mesmo sofrimento.
Os comportamentos dos trabalhadores tendem a adaptar-se ao seu ambiente de trabalho, caso contrário poderão ocorrer perturbações psicossociais de gravidade variável. Numa das suas obras mais recentes Dejours (2013) explicita-o de forma muito clara.
Talvez o grande enigma que a psicodinâmica do trabalho pretenda responder seja o seguinte: como é que alguns trabalhadores conseguem manter uma boa qualidade de vida no trabalho (particularmente ao nível da sua sanidade mental) quando em determinadas situações podem ser alvo de profundos ataques oriundos do seu ambiente laboral? Em princípio, aquilo que seria expectável era observarmos muitos trabalhadores a entrarem em descompensação, mas, na verdade, verificamos empiricamente que isso nem sempre acontece. Então, torna-se incontornável perguntar o que estará a “salvar” um grande número de trabalhadores destas brutais ofensas provenientes do mundo do trabalho?
“Os comportamentos dos trabalhadores tendem a adaptar-se ao seu ambiente de trabalho, caso contrário poderão ocorrer perturbações psicossociais de gravidade variável.”
A resposta da psicodinâmica do trabalho para esta melindrosa questão é a de que os trabalhadores encontraram diferentes estratégias (individuais e/ou coletivas) para se protegerem da violência emanada das formas atuais em que se encontram as relações laborais e a organização do trabalho. Isto significa que alguns trabalhadores encontraram um meio para suportar e ajustar o sofrimento produzido pelo trabalho e, ainda assim, manter a aparente normalidade do seu funcionamento psíquico. O autor empregou o conceito de estratégias defensivas para definir o “escudo protetor” utilizado pelos trabalhadores (Dejours, 1991).
Contudo, apesar deste mecanismo defensivo ser normalmente bastante eficaz (evitando as referidas descompensações psicopatológicas), é importante referir que a utilização deste tipo armaduras também revela o seu lado contraproducente. Na verdade, as estratégias defensivas podem funcionar como uma armadilha que insensibiliza os trabalhadores contra aquilo que os faz sofrer (Dejours, 1999). Um dos seus maiores perigos que esta situação acarreta é tornar tolerável o “sofrimento ético”; isto acontece quando o trabalhador é obrigado a praticar determinadas ações ou comportamentos que condena moralmente, por causa do seu trabalho. Este efeito de reprovação da consciência moral (ou de afronta aos valores sociais) pode ser denominada como traição do Ego, pelos psicanalistas, ou como dissonância cognitiva, pelos psicólogos.
“Um dos seus maiores perigos que esta situação acarreta é tornar tolerável o sofrimento ético; isto acontece quando o trabalhador é obrigado a praticar determinadas ações ou comportamentos que condena moralmente, por causa do seu trabalho.”
Nota final
Apesar dos esforços e avanços propostos por algumas disciplinas, o trabalho, enquanto campo de pesquisa, é algo que epistemologicamente ainda está em aberto. Na realidade, os efeitos e as consequências do trabalho, ao nível biopsicossocial, são afinal uma “caixa-negra” longe de estar totalmente decifrada. O universo do trabalho ainda acarreta alguns enigmas e incorpora um lado obscuro repleto de subjetividades. Segundo Dejours (2005) o conhecimento científico sobre complexidade humana nas situações de trabalho é ainda incompleto. É pertinente ter em conta que os riscos ocupacionais são, de certo modo, omnipresentes e estão em constante mutação. Isto significa que são dinâmicos e nunca são verdadeiramente os mesmos. Todavia, podemos afirmar que os múltiplos riscos no trabalho são uma espécie de “antecâmara” para a ocorrência de acidentes ou doenças (Areosa, 2012), logo, estes mesmos riscos são sempre passíveis de afetar a segurança e a saúde das pessoas, bem como a sua qualidade de vida no trabalho. A psicodinâmica do trabalho tem contribuído de forma singular para compreender as diversas alterações, bem como as respetivas consequências, associadas às novas formas de organização do trabalho, particularmente aquelas que estão relacionadas com a saúde mental dos trabalhadores. Esta disciplina identificou ainda ruturas significativas que podem conduzir os trabalhadores à morte, já não apenas por acidente de trabalho, mas por descompensações mentais ou psicossociais (onde podemos incluir os suicídios no local de trabalho). Sem dúvida que este é um dos grandes dramas do mundo do trabalho contemporâneo!
Referências bibliográficas
AREOSA, J. (2012). O lado obscuro dos acidentes de trabalho: um estudo de caso no setor ferroviário. Famalicão: Editora Húmus.
DEJOURS, C. (1991). A loucura do trabalho. São Paulo: Cortez Editora.
DEJOURS, C. (1999). A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV Editora.
DEJOURS, C. (2005). O fator humano. Rio de Janeiro: FGV Editora.
DEJOURS, C. (2013). A sublimação, entre o sofrimento e prazer no trabalho. Revista Portuguesa de Psicanálise, 33 (2), pp. 9-28.